Deep Blue


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Quatro patas de saudade

Hoje eu acordei de madrugada com saudades de você. Não fique preocupada. Estou bem. Estou acostumada, vira e mexe acontece. E então um batalhão de lembranças apareceu por aqui. Sua mania de dormir de barriga pra cima nos dias quentes, o barulhinho que suas patinhas faziam ao caminhar rápido pela casa, sua capacidade de conseguir tudo o que queria pelo simples fato de ser linda, sua mania de querer a família inteira por perto o tempo todo, a birra que você nutria por portas fechadas quando um de seus humanos encontrava-se do outro lado, sua capacidade de tirar Saturno do campo de visão da ocular do meu telescópio (você passava embaixo do tripé, esbarrando nele, tirando o meu objeto de observação do lugar. Não se preocupe, te perdoei todas as vezes). Faz um ano que partiu, e saudade ainda é o que tempo dita quando o assunto é você. Mas não deixo de ser grata, nem por um minuto, por ter tido a honra de sua companhia por quase catorze anos na minha vida. Você é luz agora. É a estrela alfa da constelação de Cão Maior. É a Lua. É lembrança eterna que aquece meu coração. Amo você,  Luna.


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E eu nem reparei na Lua

Meu telescópio vivia montado. Era chato pra caramba transportá-lo para o quintal, porque todo o equipamento, incluindo contrapeso, tubo, tripé passavam a minha altura. Era tudo tão pesado… Sem contar que era cheio de acessórios. Ocular isso, filtro lunar aquilo. Eram também necessários o laser e aproximadamente quatro mapas do céu, um banquinho, remover todos os protetores, enfim, dava o maior trabalho. Mas tudo era compensado quando dava para observar todas as crateras lunares, notar a diferença de profundidade entre elas, identificar alguns relevos. E tudo aquilo trazia à tona todas aquelas perguntas inerentes ao ser humano, o grande “por que?”, junto à maravilhosa sensação de fazer parte de tudo aquilo. Naquele período de dois anos e meio, eu acompanhava as condições do tempo e o movimento das constelações e planetas ao longo dos meses. Eu sabia as datas das chuvas de meteoros, me esforçava para para identificar objetos no céu profundo (nebulosas, galáxias), eu sabia os nomes de várias constelações.. Identificava desenhos no céu, estudava a variação de cores nas estrelas, me sentia à vontade de chamar várias delas pelo nome. Vi as luas de Júpiter, a Grande Mancha Vermelha, os anéis Saturno e as fases de Vênus. Era incrível. Absolutamente incrível. Fazia com que eu acreditasse mais em Deus a cada dia. Porque tanta beleza só poderia vir de uma inteligência superior. Sempre era acompanhada do barulho de um grilo e se desse sorte, interrompia tudo para sair correndo atrás da lebre, no auge dos meus 31 anos de idade, no meio do mato. Às vezes o céu fechava, eu recolhia tudo e sentia o cheiro do mato molhado. Mas tudo bem, porque eu sabia que o céu tornaria a abrir em breve. Às vezes, os vizinhos apareciam: crianças que pediam para que eu as pegasse no colo para ver a lua. Mas o melhor de tudo era ver a cara de deslumbramento dos adultos. O céu é para todos. Eu sentia imensa gratidão naquilo tudo. Um dia, eu desmontei meu telescópio pela última vez. Isso foi em julho de 2011. Embrulhei tudo em plástico bolha para a viagem (definitiva) de volta a São Paulo. Cheguei a montá-lo e me frustrei com a falta de espaço para movê-lo e o excesso de poluição luminosa e atmosférica. Não há poesia no céu acinzentado. Voltou para a caixa. Parei de verificar diariamente o site na NASA, APOD (Astronomy Picture of the Day). Parei de acessar mensalmente o site Skymaps.com e imprimir o guia que me ajudava a estudar o céu. Parece que acabou. Outro dia, cometi o grande erro de desmontar o telescópio e limpar o espelho com um paninho. Estava cheio de poeira e eu não sabia que isso removeria toda a metalização do espelho de um telescópio refletor.

Eu tenho a sensação de ter vivido com mais intensidade em Botucatu. Eu me conectei com mais freqüência com algo que traz uma riqueza sem preço. Ontem tivemos uma superlua, todos comentavam a respeito do fenômeno em todos os lugares. Não me empolguei para observá-la. Me arrependi. Parece que, definitivamente, voltar para São Paulo tirou um pouco daquela vida que pulsava dentro de mim, que me fazia acordar cedo e sair de pijama na calçada, muito cedo, só para ver o sol nascer sem poluição, sentindo o cheiro de mato da manhã. Todos os dias, aquilo me renovou. E eu pensava que era infeliz por não ter um “Starbucks da vida” para tomar um café requintado no fim da tarde de domingo. Em 2008, reclamei de São Paulo e fui embora. Mas então, me apeguei a detalhes fúteis da grande cidade com uma força tão grande, que passei a não dar valor por ter diante dos meus olhos, todos os dias, aquilo que havia desejado durante grande parte da minha vida. Hoje eu não vejo Saturno aos domingos, quando o céu escurece. Eu procuro vaga no shopping. Valeu a pena?

E vi o meu passado passar por mim
Cartas e fotografias, gente que foi embora.
A casa fica bem melhor assim

O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu
E lendo teus bilhetes, eu lembro do que fiz
Querendo ver o mais distante sem saber voar
Desprezando as asas que você me deu

Tendo a lua aquela gravidade aonde o homem flutua
Merecia a visita não de militares,
Mas de bailarinos
E de você e eu.